A CARTA
A sala está
apenas iluminada pela luz natural que entra pelas janelas pouco abertas. Está
desarrumada. Loiça suja do almoço ainda sobre a mesa. No chão um alguidar com
batatas. E ainda sobre uma das mesinhas pequenas uma travessa vazia.
Ao fundo, de costas
para a janela numa poltrona castanha, está Cacilda sentada, a olhar para o
vazio, com um papel na mão. Os braços estão caídos sobre as pernas. O papel
sujo e amarelado contrasta com o sujo negro do avental. Poucos segundos depois,
estende a mão com o papel amarrotado.
- Outra vez? – ouve-se a voz de
um homem.
Cacilda coloca o papel na mesa
perto de si. Sorri.
- Sim – responde ela.
Cacilda
recosta-se na cadeira com os olhos postos no papel em cima da mesa. Depois olha
para Fernando seriamente. É essa voz do homem.
- Não vale a pena... Entenda. –
diz Fernando.
Depois de uma pausa Fernando puxa
o papel para perto de si e deixa-o aberto em cima da mesa.
- Querida mãe… - começa Fernando.
Cacilda
encosta-se, fecha os olhos e sorri. Fernando faz uma pausa por momentos. Ela
mantém-se parada a espera que Fernando continue.
- Escrevo para dizer que não se
preocupe e que tenho fé que tudo isto termine rápido...
- A guerra! – grita Cacilda.
- Desculpe? – pergunta Fernando,
com ar estranho.
Cacilda sorri, levanta as
pálpebras e olha Fernando.
- Isto tudo não. A guerra... –
diz Cacilda.
Ao levantar o
olha,r Cacilda repara no alguidar das batatas e surpreendida inclina-se sobre
si para o agarrar. Desvia de novo o olhar para Fernando, persiste com a
leitura.
Lê-se: "Exm.ª Srª Cacilda Furtado Pereira…"
Fernando remexe na carta,
tremendo:
- “...Aqui todos gostaram dos seus bolinhos.”
Cacilda acaba
por alcançar o alguidar, coloca-o a seus pés e tristemente olha para a travessa
vazia. Por fim, retira do bolso do avental um descascador e começa a descascar
batatas. As cascas vão caindo para o avental sobre os seus joelhos e, de vez em
quando, Cacilda sacode-as para o avental.
- Porque paraste?
Fernando
suspira e continua:
“Exm.ª Srª Cacilda Furtado Pereira,
Infelizmente durante um bombardeamento sobre os nossos soldados, o seu
filho Ezequiel Furtado…”
Impera o
silêncio. Apenas o deslizar do descascador pelas batatas se ouve como um
pequeno ruído. Cacilda interrompe o seu trabalho e olha para Fernando.
Ele desvia o
olhar pousando-o na carta, mas rapidamente olha de volta para Cacilda assustado
e nervoso.
- “Alimente-se bem. Estará sempre no meu coração. Um abraço…” – lê
Fernando.
- Um abraço…
Cacilda fita o
olhar no exterior atrás de si. A sua expressão é quase apática. E a sua voz
mecânica.
- Ele sobrevive... – exprime
Fernando.
Tenta despir de preocupações
Cacilda.
Coloca a carta perto de Cacilda.
Levanta-se e aproxima-se dela pousando a mão sobre o ombro.
- Até amanhã, se Deus quiser. –
despede-se.
Cacilda abre
os olhos com força, sem responder a Fernando. Ouve-se os passos de Fernando
afastarem-se. Ela pega na carta e rasga-a, atirando-a para o alguidar. Só
depois se ouve a porta da casa a fechar.
António Coelho
Beatrice Brigola