quarta-feira, 29 de maio de 2013

A CARTA


 
                                                                 A CARTA
 
A sala está apenas iluminada pela luz natural que entra pelas janelas pouco abertas. Está desarrumada. Loiça suja do almoço ainda sobre a mesa. No chão um alguidar com batatas. E ainda sobre uma das mesinhas pequenas uma travessa vazia.

Ao fundo, de costas para a janela numa poltrona castanha, está Cacilda sentada, a olhar para o vazio, com um papel na mão. Os braços estão caídos sobre as pernas. O papel sujo e amarelado contrasta com o sujo negro do avental. Poucos segundos depois, estende a mão com o papel amarrotado.

- Outra vez? – ouve-se a voz de um homem.

Cacilda coloca o papel na mesa perto de si. Sorri.

- Sim – responde ela.

Cacilda recosta-se na cadeira com os olhos postos no papel em cima da mesa. Depois olha para Fernando seriamente. É essa voz do homem.

- Não vale a pena... Entenda. – diz Fernando.

Depois de uma pausa Fernando puxa o papel para perto de si e deixa-o aberto em cima da mesa.

- Querida mãe… - começa Fernando.

Cacilda encosta-se, fecha os olhos e sorri. Fernando faz uma pausa por momentos. Ela mantém-se parada a espera que Fernando continue.

- Escrevo para dizer que não se preocupe e que tenho fé que tudo isto termine rápido...

- A guerra! – grita Cacilda.

- Desculpe? – pergunta Fernando, com ar estranho.

Cacilda sorri, levanta as pálpebras e olha Fernando.

- Isto tudo não. A guerra... – diz Cacilda.

Ao levantar o olha,r Cacilda repara no alguidar das batatas e surpreendida inclina-se sobre si para o agarrar. Desvia de novo o olhar para Fernando, persiste com a leitura.

Lê-se: "Exm.ª Srª Cacilda Furtado Pereira…"

Fernando remexe na carta, tremendo:

- “...Aqui todos gostaram dos seus bolinhos.”

Cacilda acaba por alcançar o alguidar, coloca-o a seus pés e tristemente olha para a travessa vazia. Por fim, retira do bolso do avental um descascador e começa a descascar batatas. As cascas vão caindo para o avental sobre os seus joelhos e, de vez em quando, Cacilda sacode-as para o avental.

- Porque paraste?

Fernando suspira e continua:

“Exm.ª Srª Cacilda Furtado Pereira,

Infelizmente durante um bombardeamento sobre os nossos soldados, o seu filho Ezequiel Furtado…”

Impera o silêncio. Apenas o deslizar do descascador pelas batatas se ouve como um pequeno ruído. Cacilda interrompe o seu trabalho e olha para Fernando.

Ele desvia o olhar pousando-o na carta, mas rapidamente olha de volta para Cacilda assustado e nervoso.

- “Alimente-se bem. Estará sempre no meu coração. Um abraço…” – lê Fernando.

- Um abraço…

Cacilda fita o olhar no exterior atrás de si. A sua expressão é quase apática. E a sua voz mecânica.

- Ele sobrevive... – exprime Fernando.

Tenta despir de preocupações Cacilda.

Coloca a carta perto de Cacilda. Levanta-se e aproxima-se dela pousando a mão sobre o ombro.

- Até amanhã, se Deus quiser. – despede-se.

Cacilda abre os olhos com força, sem responder a Fernando. Ouve-se os passos de Fernando afastarem-se. Ela pega na carta e rasga-a, atirando-a para o alguidar. Só depois se ouve a porta da casa a fechar.

 
António Coelho
Beatrice Brigola